sábado, maio 06, 2006

965. Muitos segundos tem meia-hora!

- Tenho uns amigos muito chatos, disse eu em tom de desabafo, enquanto olhava para a borra no fundo da chávena de café.
O Malaquias que estava embrenhado a ler “Anjos e Demónios” – mais uma vítima da publicidade – pensei eu, que não sou fã de Dan Brown, nem levantou os olhos, mas interrogou-me:
- Chatos porquê?
- Só falam de bola, pá!
O Malaquias deve ter acabado de ler a frase ou o paragrafo, colocou o marcador, fechou o livro, levantou a cabeça e,
- Isso interessa-me, pá!
- Olha outro… de repente deu-me um arrependimento por ter levantado a lebre. Primeiro porque tinha a certeza que ele iria pedir-me para clarificar e a última coisa que me apetecia era falar de bola. Segundo, porque tinha de aturar um “pá” em cada duas palavras. Juro que só por vergonha é que ainda tomo café com o Malaquias. Toca-me à campainha todos os sábados de manhãs, “Então Pré, vamos ao Aguiar?”. De vez em quando arranjo uma desculpa, mas como não posso evitar sempre, lá acedo. Se não trás um livro “da moda” na mão, chega à mesa, procura ávido e ansioso ou o Correio ou 24 Horas e passa amanhã toda “é pá, já leste esta, pá?, o gajo matou a própria mãe, pá, um tiros nos cornos, pá, é o que estes gajos merecem, pá, se fosse na América ias ver, pá”. Eu já finjo que nem oiço, normalmente tento dar uma volta ao texto e lá vem o gajo, “caralho, ao fim destes anos todos ainda és comuna, pá?, qual integração social, qual merda, isto vai lá é com a pena de morte”. Finjo que não o oiço.
- Desembucha, pá, o que é que esses gajos te andam a chatear a cabeça com bola, pá?
- Coisas, sem importância, Malacas (que é como eu o trato), de novo a treta de um tal Apito Dourado, digo eu para ver se arrepio caminho e se ele volta ao Dan Brown.
- Sem importância, pá? Sem importância, insistiu, e eu cada vez mais arrependido de ter feito o comentário.
- Deixa lá, Malacas, estás a gostar do livro? – tentei disfarçar.
- Caga no livro, pá – riposta-me o Malaquias, como se fosse eu que não tivesse levantado os olhos do livro durante os quase 15 minutos, desde que entrou no café. – Os gajos têm muita razão, pá, lembras-te do caso da corrupção na arbitragem no Brasil?
- Lembro-me mais ou menos, mas o que é que isso vem para o caso.
- Isso foi descoberto muito tempo depois do Apito Dourado e já está resolvido, pá.
Eu juro que ele me está a mentir. No Brasil? Ainda se isso fosse na Alemanha, vá lá, vá lá.
- E na Alemanha, pá?
Caiu-me o queixo no chão. O Malaquias, além de saber tudo de bola, ainda sabe ler pensamentos.
- O que é houve na Alemanha? Perguntei eu, na minha ingénua ignorância sobre futebol.
- Na Alemanha, o mesmo, pá. Foram de cana, pagaram multas, foram expulso da arbitragem, pá. Foda-se pá, andas a leste ou quê? Ou só vês telenovelas?
Rebentei. Eu não só não gosto de telenovelas, mas também não sou tão desinformado assim. Falei-lhe num artigo do Miguel Sousa Tavares que me tinha chegado por e-mail, em que ele se regozijava pelo facto de o Apito Dourado estar a ser arquivado. Falava num tal Pinto da Costa e num tal Valentim, que não imagino quem sejam, mas ao que parece, o Sousa Tavares gosta muita muito e por isso estava tão contente.
- Não me fodas pá!, Tu não me fodas com o esse gajo, pá. Olha que eu perco a calma. Tu não vês que esse gajo manda às urtigas tudo o que é ética, quando lhe tocam nos padrinhos? – Eu estava cada vez mais estupefacto – esse gajo se não fosse filho de quem foi, pá, esse gajo nem advogado, nem escritor, nem merda nenhuma. Quanto muito era um caçador de perdizes. Tu não me fodas com esse gajo.
Tenho aqui eu fazer um parêntesis para vos dizer que me senti acabrunhado. À nossa volta já se tinha juntado um magote de malta, uns conhecidos, outros não. Havia até apostas de que o Malaquias me iria às trombas se eu voltasse a falar do Miguel Sousa Tavares. Eu tentei acalmei as coisas.
- Nisso tens razão, Malacas, parece que esse gajo, usando a expressão dele, mas que parecia nova para o Malaquias...
- Gajo! Dizes bem pá, pior que gajo, pá, - interrompeu-me. E vais ver um dia deste ele a defender que o caso em Itália tem de ir ao até ao fim., pá. Até envolve o Micoli e tudo!
- Chamei o Aguiar e pedi a conta. Olha o Micoli também metido nisto. Quem será o tal Micoli? – levantei-me e disse-lhe que amanhã não ía fazer joging ao Parque da Paz.
- E não te esqueças disto que te vou dizer, pá. Em Itália só começou agora e vai ser mais rápido que o Apito Dourado!
Eu, é que saí rápido. Estas merdas da bola não me interessam nada. Mas mesmo assim vim pelo caminho a pensar quem seriam os Anjos e os Demónios nesta conversa. Meia hora da minha vida dedicada à bola. Foda-se! Meia hora! Muitos segundos tem meia-hora!

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